Projeto sobre biossegurança estuda implicações de contaminações
e oferece cursos para profissionais que atuam em salões de Campinas
As profissionais dos institutos de embelezamento que você frequenta como manicures, pedicuros e podólogas, submetem os instrumentos que utilizam a processos de limpeza e esterilização adequados antes do uso? Se os instrumentos perfurocortantes como alicates de unha e cutícula, espátulas de metal, dentre outros, que provocam abrasões na derme ou epiderme, não forem devidamente processados há o risco de transmissão de microrganismo como vírus, fungos e bactérias. Podem também gerar infecções e se constituírem em veículos para a transmissão de doenças infectocontagiosas como as onicomicoses, as hepatites B e C, as quais se têm proliferado de forma alarmante, e até o vírus HIV.
Como os salões de beleza podem evitar a transmissão desses agentes infectantes? A literatura considera que a esterilização desses instrumentos deve ser antecedida por sua lavagem com detergente enzimático, escova e enxague abundante para que os resíduos orgânicos não fiquem neles impregnados. Depois de secos devem ser embalados antes do processo de esterilização, o que impede a reprodução de todos os organismos presentes. A esterilização pode ser realizada com a utilização de calor seco, em estufa ou forno de Pasteur, a 1700 °C durante 60 minutos; mas pode ser feita usando-se vapor saturado sob pressão, em autoclaves, a 1340 °C por 15 minutos. As embalagens adequadas utilizadas nos dois casos devem ser abertas apenas por ocasião do uso dos instrumentos, com técnica asséptica, para evitar eventuais contaminações. No salão de beleza que você frequenta adotam-se esses procedimentos?
Essas preocupações aliadas à grande procura por serviços de embelezamento suscitam ações de prevenção e promoção da saúde. Em decorrência, desde 2005, vêm sendo desenvolvidos na Unicamp trabalhos que têm o intuito de verificar como é realizado o processamento dos instrumentos perfurocortantes usados em institutos de beleza. Nesses estudos foi elaborado um questionário que permite identificar como ocorre o processamento de alicates de unha e de cutícula, espátulas de metal e outras ferramentas em seus locais de uso. Os dados obtidos a partir do questionário, aplicado em dois municípios do Estado de São Paulo e devidamente validado, mostraram que a forma como manicures, pedicuros e podólogos realizam o processamento dos instrumentos apresenta falhas, não garantindo seu uso com segurança.
A partir daí nasceu, na Faculdade de Enfermagem (FEnf) da Unicamp, o projeto “Biossegurança na prestação de serviços de beleza e podologia”, coordenado pela professora Maria Isabel Pedreira de Freitas. O seu objetivo foi o de promover uma mudança de comportamento através de oferecimento de curso para os profissionais dos salões de beleza de Campinas. Para tanto, a docente organizou uma equipe de múltiplas capacitações e experiências. Dela fazem parte o médico Carlos Emílio Levy, professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, responsável pelo Laboratório de Patologia Clínica do HC; a enfermeira Maria Filomena Gouveia de Vilela, da FEnf; a professora Dirce Zan da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp; a farmacêutica Juliana Rossato Braga, que atua na formação de profissionais do ramo da beleza no Serviço Nacional do Comercio - Senac-Jundiaí; a enfermeira Vanessa Vilas Boas, da Comissão de Controle de Infecções Hospitalares, do Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti (Caism) da Unicamp; e as graduandas da FEnf Ágatha de Souza Melo Pincelli, Amanda Stepnanie de Souza, Talita Rodrigues Nicácio e Thais Aparecida Porcari. O projeto foi patrocinado pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac).
O início
A ideia, que culminou na realização do trabalho surgiu em 2005, a partir de um artigo publicado pela Fapesp, de autoria do infectologista Roberto Focaccia, da USP, chamando a atenção sobre suspeita de que o aumento exponencial da hepatite estivesse ocorrendo por transmissão em barbearias e manicures. Logo depois, pesquisa realizada por uma orientada do professor revela que cerca de 30% das manicures de São Paulo tinham contraído hepatite B. Além disso, estudo desenvolvido em prisões do Canadá, com vistas a determinar as causas da vertiginosa incidência de hepatites e de Aids entre os prisioneiros, constata que estes se faziam tatuagens mutuamente em condições precárias de higiene.
Já em 2006, a aluna Carolina Seleguini Pearson, em trabalho de conclusão de curso, realizou levantamento em nove institutos de beleza do município de Jundiaí com o objetivo de construir, validar e aplicar um questionário sobre limpeza, desinfecção, esterilização e armazenamento de instrumentos utilizados em institutos de beleza para identificar como são realizados esses processamentos pelos seus profissionais.
Em 2013, esse questionário foi retomado pela graduanda da FEnf Talita Rodrigues Nicácio, do Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS), em trabalho de Iniciação Científica, com o objetivo de avaliar como estava sendo realizado o processamento de instrumentos críticos em 19 institutos de embelezamento da região central de Campinas. Na ocasião ela identificou a quantidade de salões que constavam do cadastro do Sistema de Informação em Vigilância Sanitária do município. A constatação foi a de que apenas 346 deles estavam cadastrados.
Ao agrupar os dados obtidos no final de 2012 e no início de 2014, a autora concluiu que apenas 21% dos institutos de beleza estudados realizavam o processamento dos instrumentos em todas as etapas e 74% deles realizavam a limpeza com água que, se bem feita, pode remover os microorganismos presentes, apesar de não suficiente. Embora 68% possuíssem estufa e 32%, autoclave, nem sempre as utilizavam corretamente, pois, em 66% dos casos, a estufa era aberta antes do tempo devido. Além do que, conforme mostra a literatura, a lavagem adequada é essencial antes da esterilização para a remoção total da carga microbiana, mesmo porque se não realizada ou ineficiente a sujidade remanescente pode impedir a desinfecção e esterilização por limitar a ação dos agentes esterilizantes devido à formação de biofilme. Por outro lado, falhas no processo de esterilização impedem que ocorra a desnaturação e inativação de células microbianas. Ou seja, as etapas realizadas sem critério não garantem que a instrumentação possa ser utilizada de modo seguro.
Com base nos resultados mostrados no questionário, Isabel concluiu que há deficiências importantes nos procedimentos de limpeza, desinfecção e esterilização dos instrumentos usados, o que oferece risco de transmissão de doenças. Durante a coleta de dados Talita identificou um ponto comum entre os ocupacionais: o interesse em conhecer a forma correta de preparar o material que usam de forma a garantir suas seguranças e dos seus clientes.
Agentes infectantes
O médico Carlos Emilio Levy, do Departamento de Patologia Clínica, do HC da Unicamp, lembra que o HIV e as hepatites B e C, além de terem como vias de contaminação o compartilhamento de seringas, as relações sexuais, acidentes com perfurocortantes em serviços de saúde, tatuagens, agulhas de acupuntura não devidamente esterilizados, também podem se propagar através de instrumentos contaminados com sangue não devidamente esterilizados utilizados por manicures, pedicures e podólogos.
As onicomicoses ou infecções fúngicas por dermatófitos ou fungos do gênero Cândida, ou ainda por bactérias como o Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes ou Pseudomonas aeruginosa, constituem doenças localizadas e de efeitos mais estéticos, mas delas podem resultar alteração da forma ou perda total da unha e até exigir drenagem de abscessos.
O curso
O quadro levantado tornou evidente a necessidade de pensar e executar intervenções para capacitar esses profissionais. Daí a ideia do curso. A equipe do projeto discutiu então as delimitações dos temas a serem abordados, ocasião em que a professora Dirce Zan sugeriu metodologia mais participativa e destacou a importância de utilizar dados originários da realidade pesquisada em que as profissionais dos salões de beleza estão inseridas.
Depois de cuidadoso preparo, o curso foi ministrado em novembro de 2015 na FEnf, com a participação de 15 ocupacionais que atuam em diferentes salões de beleza da região central de Campinas e que haviam respondido o questionário inicial. O curso teve como escopo ministrar conceitos básicos de microbiologia, apresentar dados epidemiológicos e de algumas doenças infecciosas que podem ser transmitidas nos institutos de beleza.
A programação incluiu também uma visita ao Laboratório Experimental para Estudo de Reprocessamento de Artigos Odonto-Médico-Hospitalares e Análises Microbiológicas (Labex), montado com recursos da Fapesp e mantido pela coordenadora do projeto com pesquisas financiadas, em que foram ministradas noções de transmissão de infecção e apresentadas as etapas a serem seguidas para o processamento dos instrumentos usados nos institutos de beleza.
O curso se iniciou com o médico Carlos Emilio Levy abordando aspectos gerais dos microrganismos na natureza e passíveis de transmissão em institutos de beleza. A seguir, a enfermeira Maria Filomena Gouveia Vilela deu informações epidemiológicas sobre as hepatites B e C no Brasil e em Campinas. Na sequência, a farmacêutica Juliana Rossato Braga falou sobre onicomicoses.
Depois dessas exposições os participantes foram conduzidos ao Lapex, instalado no HC, quando tiveram oportunidade de observar, através de lupa que permite aumento de 40 vezes, os instrumentos que utilizam e que haviam trazido, conforme lhes fora previamente solicitado. Foi quando as profissionais tiveram sua primeira explosão de surpresa ao se depararem com resíduos em seus instrumentos, vários dos quais ainda novos. Deram-se conta então de que o processamento incorreto não leva à remoção dos resíduos dos materiais.
Elas assistiram ainda duas dramatizações protagonizadas por Ágata, Thais, Talita e Juliana, que teve o intuito de mostrar o que ocorre de correto e incorreto nas atividades de seus dia a dia. A identificação dos problemas por parte das participantes foi imediata. Seguiu-se uma plenária em que elas puderam identificar questões que permeiam suas realidades. Foi nessa fase, diz Isabel, que elas manifestaram a segunda surpresa: a de constatar que as informações que haviam recebido ao longo do curso deixavam clara a necessidade de seguir as recomendações para não colocarem em risco os clientes ao processarem adequadamente os instrumentos. Seguiu-se então exposição da professora Isabel sobre as etapas do processamento dos materiais, com demonstração de cada passo.
Finalmente as participantes foram convidadas a responder um questionário de avaliação sobre o curso quando puderam e explicitar contribuições dos seus interesses e se comprometeram a trazer para o próximo curso duas colegas.
Impressões
A professora Isabel considera que os objetivos do curso foram plenamente atingidos com a participação muito ativa das ocupacionais. “Todas manifestaram desejo de voltar a participar do curso deste ano e saíram com o compromisso de trazer com elas mais duas pessoas, ou seja, elas que falam a linguagem das colegas, vão se tornar facilitadoras e multiplicadoras”, diz.
O professor Carlos Levy destaca a forma como o curso foi organizado: “Houve a preocupação de saber o que essas profissionais queriam, o que sabiam e o que desejavam aprender. Procuramos chegar ao nível delas utilizando os recursos de que dispunham. A troca dessas experiências foi muito rica”.
Filomena destaca a importância de a universidade contribuir de forma relevante para a sociedade e aprender as metodologias mais indicadas para atingir o público externo: “As manicures saíram daqui muito motivadas, entendendo que trabalham com uma atividade em que, além de trazer beleza, conforto e de se constituir em uma fonte de renda, podem contribuir para prevenir doenças”.
Juliana confessa que se deparou “com um universo em que as pessoas não conhecem porque não têm acesso às informações. Elas se sensibilizaram particularmente quando descobriram a origem das micoses que tinham contraído e que podem ser as primeiras vítimas de processamentos não adequados”.
Talita enfatiza o retorno da pesquisa para a sociedade de forma que “seus resultados possam ser utilizados para divulgar e reproduzir esses conhecimentos, consolidando mudanças de atitudes que contribuam para diminuição dos riscos de doenças”.
Isabel conclui: “Aprendemos que, além das informações e do treinamento que possam ser transmitidos por profissionais de saúde, existem muitos fatores intervenientes como mercado de trabalho, patrões que nem sempre estão dispostos a gastar, e efetiva vigilância sanitária”.
Mais informações em: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/658/pesquisas-expoem-riscos-de-transmis...